quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O maior e melhor superlativo da publicidade

Se há uma coisa que me incomoda na nossa profissão de escrevinhador publicitário é o apreço cego e descabido pelo superlativo. Mesmo quando sabemos perfeitamente que não há motivo algum para tanta bajulação, lá estamos nós desmoralizando a nossa imagem, escrevendo, reescrevendo, trescrevendo bobagens as mais absurdas sobre o que quer que seja. Já foi sobre o Collor (mas aí a coisa se explicava), já foi sobre um sem-número de outras coisas. A mais recente foi sobre o tal carro de 3 portas... Santa bobagem, Batman! Curiosamente, o mestre Ruy Castro, na Folha de hoje, veio em meu socorro mostrar que não estou sozinho. Na sua coluninha, sob o nada publicitário título de Três portas, eis aí o que ele diz. Leia e diga se não andamos precisando de um pouco menos de grandiloquência vazia:

Antes que você comece a ler, devo adverti-lo: sou ignorante a respeito de carros. Nunca dirigi, não distingo um fusca de uma jamanta, e o único equipamento de bordo que, como copiloto, já manobrei foi o isqueiro do carro.
Páginas e páginas na mídia estão anunciando que "finalmente chegou o lançamento mais espetacular de todos os tempos": o carro de três portas. Embatuquei: por que "finalmente"? Não sabia que a humanidade estava paralisada, sôfrega e expectante por essa novidade que vem alterar a ordem do universo. E o que impedia que tal maravilha fosse inventada antes? Também não sei. Mas, e daí? O fato é que finalmente temos o carro de três portas.
Virando a página do anúncio, leio que o carro de três portas é "simplesmente genial". Exceto pelo apreço do redator por advérbios de modo, o texto informa pouco a respeito das vantagens de um carro ter três portas, e não duas ou quatro como de praxe desde 1900. Tirando os óculos para ler melhor, descubro em letras miúdas: "Total segurança para desembarque de passageiros somente pelo lado direito".
Ah, bom. Significa que, a partir de hoje, ninguém será abalroado por outro veículo ao sair de forma atabalhoada de um carro pelo lado esquerdo -porque não existe mais a porta traseira esquerda. Mas, pelo visto, o motorista continuará correndo esse risco. Por que não eliminar também a sua porta, mantendo apenas as duas do lado direito?
Para o Rio, o carro de três portas chega em má hora. Com as pistas da direita reservadas agora somente aos ônibus e táxis em Copacabana, em Ipanema e no Leblon, os particulares são obrigados a trafegar, embarcar e desembarcar pela esquerda. Donde o carro de três portas nasceu impraticável em três dos bairros mais abonados do Brasil.

Você, there and everywhere

Nizan Guanaes, sem cobrar nada, publicou na Folha de ontem um artigo sobre a agência que abriu em NY, naturalmente chamada Africa NY, dando sinais sobre o que temos de fazer - eu, você, todos nós - para continuarmos sendo profissionais de comunicação. Dou eu meu sinal: leia além das palavras do Nizan, interprete além dos serviços de uma agência fazedora de anúncios geniais, pense além do texto dele. Quem assim fizer tem mais chances de ir além. O título do texto: Se você conseguir lá...


A agência que abri em Nova York, diferentemente do que se poderia normalmente esperar de mim, não é uma agência de publicidade. É uma agência de relações públicas.
Todas as vezes que falo isso, vejo sempre sobrancelhas levantadas. De interrogação, de perplexidade ou de dúvida. Mas tenho certeza absoluta de que é com relações públicas, e não com publicidade, que as empresas brasileiras vão construir suas marcas no mundo. Afinal, não temos dinheiro para construir marcas mundiais pagando os imensos custos de mídia de um mercado global caro, fracionado e complexo.
E não é só isso. Não é só um problema de falta de dinheiro. Não temos cultura de anunciantes globais. O Brasil sempre foi um país fechado e insular. Completamente voltado para dentro. Boa parte de nossas exportações são commodities. Poucas marcas brasileiras são globais. Mas hoje é preciso ser global até para competir no seu próprio país.
As pessoas vão se tratar no hospital Albert Einstein ou no Sírio-Libanês porque têm certeza absoluta de que eles são hospitais de padrão global. Porque, se tivessem alguma dúvida, elas pegariam um avião e iriam se tratar no exterior, como faziam no passado. Portanto, a construção de uma percepção global de sua marca, do que você faz, é também uma iniciativa de proteção do seu mercado interno.
É essa imensa oportunidade, precaução e ferramenta que o Brasil e suas marcas devem explorar. E explorarei na Africa NY. O exemplo mais eloquente disso é o sucesso internacional da marca Havaianas, que não foi construído no exterior com publicidade, mas sim com ações de RP, como sampling, networking.
É difícil, por exemplo, você se hospedar em um bom hotel no Brasil e não ter uma sandália dessas no armário. Esse trabalho de chinês foi feito pelas Havaianas. E, como tudo o que é bom, deve ser seguido por outras indústrias também.
Marcas brasileiras de moda, como Osklen e Lenny, sempre fizeram esse trabalho de RP divinamente. Sabem tudo do assunto. Exatamente porque nunca tiveram grandes verbas publicitárias. Por isso, só tinham como projetar suas marcas no mundo pensando fora da caixa. Fazendo um corpo a corpo agressivo com a imprensa de moda internacional e construindo com ela um intenso relacionamento.
Ninguém da grande imprensa internacional passa por São Paulo e pelo Rio sem jantar na casa da Lenny Niemeyer, do Oskar Metsavaht, do Rogério Fasano ou sem tomar drinques com Monica Mendes e com Paula Bezerra de Mello. Vi a Daslu construir sua marca no mundo com pouquíssima verba e muitíssima imaginação. Justamente porque todos esses aqui citados não tiveram, em geral, um vintém para anunciar. E, portanto, não podiam ficar acomodados, na zona de conforto em que a publicidade acaba aprisionando a gente.
A capacidade de promover meu trabalho e o de meus anunciantes sempre ajudou a mim e a eles. Washington Olivetto foi o primeiro publicitário a ter uma compreensão madura disso.
Antes da palavra "buzz" existir, ele sempre soube fazer "buzz" marketing como ninguém. Algumas das pessoas mais bem-sucedidas do mundo, independentemente de serem gênios no que fazem, são gênios em RP. Como Steve Jobs, Madonna, Lady Gaga, Valentino ou Ralph Lauren.
É com esse olhar que abro minha agência em Nova York. Certo de que é com relações públicas que a pinga brasileira, o pão de queijo, o design, a água de coco, o avião da Embraer, o sabonete de óleo vegetal, as praias do Nordeste ou os arquipélagos do rio Amazonas se tornarão mais conhecidos no mundo.
É munido dessa esperança e dessa audácia que rumo para Nova York, pátria da publicidade e das relações públicas. Porque, afinal, "If you can make it there, you can make it everywhere".

domingo, 11 de setembro de 2011

Um pouco de exórdio não faz mal pra ninguém

Não bastasse sempre ter achado Exórdio um belo nome pra varão, nunca cogitei que algum dia pudesse estar aqui, neste minifúndio, tratando dele - do exórdio, não do varão. De toda forma, além dele - do exórdio, não do varão - trato também dos outros chamados elementos de coerência de um texto, especificamente na publicidade, inclusive com o fim de indicar aos alunos a sua correta aplicação na prova - não nas provas, como se verá logo abaixo. 


Às vezes, a melhor movimentação financeira é ficar parado.(aí está ele, o exórdio)

Volta e meia, surge no mercado uma grande aplicação. Dessas imperdíveis, bola da vez. Mas, como toda corrida do ouro, ela pode ser boa só para quem chega na frente. É para aliviar o risco versus o retorno das aplicações que existe a Hedging-Griffo. A administradora de recursos mais especializada em clientes private do país. (não parece uma narrativa composta de informações e algumas auto-exaltações?) Tanto que foi laureada com o prêmio Marca de Valor, do jornal Valor Econômico, em 2010. (aqui, sim, uma prova, escorada no prestígio do jornal citado) Ela recomenda apenas os melhores produtos do mercado. Inclusive fundos próprios, como o fundo HG Verde, que há vários meses é um dos mais rentáveis do Brasil. Na Hedging-Griffo, você é atendido por um dos sócios da empresa. É com dedicação e autonomia de dono que o assessor financeiro administra sua carteira. Ligue (11) 3444-8787 e peça uma visita. O assessor financeiro vai recomendar quais passos você deve dar. E quando é melhor não dar passo nenhum. (vejam como se tenta, em meio a tantas funções da peroração, criar um envolvimento emocional com o leitor...)

HEDGING-GRIFFO
(assinatura, como se vê, completamente à parte em relação ao corpo de texto)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Pra frente, Brasil, com suas historinhas...

Sempre me encantei demasiado pelos contadores de história. Desde menino, de quando se torce o pepino, que me ficam na memória afetiva (ou no HD interno, como é de bom alvitre, como dizem os antigos) aqueles casos relatados por avós, tios e o que mais aparecesse pela frente, principalmente em Poço Fundo, com disposição para levar-nos a mim e minhas irmãs, primos e tal a um mundo de fantasia e imaginação. Foi por isso que hoje, lendo na Folha este textinho do Cony, me ocorreu de contar eu esta pequenina historinha. A do Cony chama-se Pra frente, Brasil!, e o grande barato é o seu desfecho, quando o cronista e escritor saca de uma cena absolutamente banal o mote para o caso que acabou de contar. Como me ajudou a Adriana em sala, exemplo típico dos chamados fait-divers, fonte de tantas e tantas, desde as mil e uma noites das Arábias. Leia e viaje.


Semana passada, contei neste canto que fui abordado por um sujeito na calçada da Academia Brasileira de Letras que me perguntou por que eu não fazia nada contra a corrupção reinante. Ele me olhou escandalizado e deduzi que, na opinião dele, o Brasil não ia pra frente por causa de tipos como eu.
O episódio teve um antecedente que considero histórico. Coisa de 10, 15 anos, estava num elevador lotadíssimo. Fazia calor e acredito que todos estávamos de péssimo humor, pois o carro ia parando em todos os andares e cada vez entrava mais gente.
Num deles, um sujeito magro, vagamente parecido com o Ferreira Gullar, só que mais penteado, apertou o botão e olhou para dentro. Viu que não cabia nem mesmo uma pessoa magra como o poeta, mas não tirou a mão do botão, continuou prendendo a porta.
Olhou, olhou, avaliou, fez que ia entrar, mas hesitou, por duas vezes quase chegou a entrar, mas o bom-senso o fez recuar.
Em silêncio e má vontade, todos esperamos que ele, afinal, se decidisse. Finalmente, desistiu e tirou a mão do botão que prendia o carro. Perdemos na operação cerca de meio minuto.
Fechada a porta, a parcela da humanidade ali reunida pelo acaso teve um suspiro de alívio, mas logo uma voz lá de trás se fez ouvir: "É por causa de caras assim que o Brasil não vai pra frente!"
Nunca, em tempo algum, o silêncio foi tão consensual. Embora estranhos entre si, sem nunca nos termos visto antes ou depois, todos concordamos com aquela constatação unânime.
Pouquíssimas vezes nos fastos humanos uma verdade foi tão verdadeira. Ampliada ao seu limite, seria o fim de todas as desavenças humanas, não haveria guerras, crimes, todos seríamos irmãos, o reino de Deus, afinal, instalado na terra e no elevador.

sábado, 13 de agosto de 2011

Otto: nunca demais

Este texto foi publicado originalmente na Folha de São Paulo do dia 1 de maio de 1991, data em que o jornalista e escritor mineiro Otto Lara Resende retomava sua coluna, agora na página 2, sob o tradicional titulinho Rio de Janeiro. Sua primeira coluna desta nova fase, portanto, foi publicada justo no dia de seu aniversário, e depois acabou tornando-se título de uma coletânea de suas crônicas - Bom dia para nascer. É um baita exemplo de desenvolvimento de um texto com cadência e ritmo moldados simples e tão somente pela pontuação. Dá gosto ver como é fácil, depois de ter sido tão difícil. Olha ele aí:

Eu não tinha a intenção de dizer logo assim de saída. Mas, já que a Folha me entregou, confesso que sou mesmo antigo. Modelo 1922. O do Centenário da Independência, da Semana de Arte Moderna, do Tenentismo, da fundação do Partido Comunista, da inauguração do radio etc. Suspeito que só eu e o rádio estamos funcionando neste mundo povoado de jovens. Mas juventude tem cura. Eu também já fui jovem. É só esperar.Bem mais antiga é a origem do Dia do Trabalho. Começou em 1886, com a greve de Chicago. A polícia, claro, compareceu. Resultado: onze mortos – quatro operários e sete policiais. Primeiro e último escore a favor do trabalho. Três anos depois, em 1889, lembrando Chicago, os socialistas de Paris inventaram o Dia do Trabalho.A data chegou depressa ao Brasil, mais subversiva do que festiva: em 1893. A recente Republica baixou o pau. Vem de longe o axioma: a questão social é uma questão de polícia. Só em 1938 surgiu aqui, oficial, o Dia do Trabalho. Também dia do pelego e do culto à personalidade do ditador. Em 1949, finalmente, a data virou lei. Lei e feriado.Mês de Maria, mês das noivas, mês de flor-de-maio, maio sugere pureza e céu azul. “Só para meu amor é sempre maio” – cantou o primeiro poeta, Camões. Um dos últimos, Drummond, escreveu uma “Carta aos nascidos em maio”. Viu neles uma predestinação lírica, a que chamou o princípio de maio.Em maio, e no dia primeiro, nasceram José de Alencar (1829) e Afonso Arinos (1868). Dois escritores, dois verdes. O indianista e o sertanista. Ambos enfática e ecologicamente brasileiros. Não será mera coincidência a data de certidão de nascimento do Brasil. A carta de Pero Vaz de Caminha é de primeiro de maio de 1500. Como o Brasil também é Touro, está difícil de pegá-lo à unha. Mais poeta que escrivão, Caminha foi o primeiro ufanista. Também pudera: em 1500 tudo ainda estava por ser destruído.Só depois chegaram a inflação, a corrupção e a dívida externa. Há dez anos, em 1981, para celebrar o Dia do Trabalho, houve a explosão do Riocentro. Planejada em segredo, ao contrário da explosão de ontem em São Paulo, vem agora a furo a farsa do inquérito militar. Dá até vergonha de ser brasileiro. Maio, porém, está aí. Primeiro de maio: bom dia para começar. Ou recomeçar.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Das éguas e dos gays

Nestes nossos tempos em que até a pós-modernidade parece tímida para tanta indefinição, eis que outro dia somos deparados com esta cena na capa da Folha de São Paulo. Um homem supostamente assediando uma égua, com exagerados carinhos para o animal absolutamente desfalecido de tanto amor. Nada mais natural, portanto, já que uma vez por dia somos premiados com novas fotos de casais gays daqui e de onde for, nas mesmas páginas seculares da Folha. Qual não foi meu estranhamento ao ler a legenda e ver que não se tratava bem do que eu pensara. Era o dono da égua, emocionado com a morte dela, atropelada, logo ela, seu mais caro objeto de trabalho. Alguns dias depois, no entanto, um brasileiro qualquer, destes de bom coração, prontificou-se a doar uma outra égua ao pobre sujeito, para que todos voltassem a viver felizes para sempre. Mais ou menos como os gays na mídia.

Que passado estamos reservando para o presente?

Este belo fecho de texto é da crítica que a jornalista Isabela Boscov faz ao novo filme do Woody Allen, Meia-noite em Paris (que ainda não vi mas já gostei) em uma edição da ex-revista Veja. Diz muito da nossa vida, do que fazemos, do que ainda temos para fazer, do que não fizemos, enfim...

(...) Então é assim, mostra com graça e espiritualidade Woody Allen: ninguém está satisfeito em seu tempo e acha que sempre perdeu o melhor da festa. Mas com tudo que Meia-noite tem de ligeiro, sua argumentação é complexa. Só o passar do tempo dá a medida do que é o gênio humano, e só podemos medir-nos, portanto, pelo passado. Mas, para viver, nada como o presente: porque ele é tudo que se tem – e como escorre rápido por entre os dedos dos distraídos.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Atrás poeira: à frente, nós

Certa vez, assistindo uma parte gravada do Jô, eis que passam lá o Ivan Lins e um certo Rafael Alterio, que cantam esta música do Sá e Guarabyra, chamada Atrás Poeira. Melancólica, triste, doída, mas dando a clara impressão de que é a cara do Brasil, ou do interior do Brasil, quem sabe de Minas e Goiás, mais de Minas, onde as pessoas são naturalmente melancólicas, com uma meio tristeza produzida pra parecer charme. A cara desta musiquinha, com a letra aí embaixo:


Ele pegou um baio
E como um raio
Sumiu no atalho
Na algibeira
Tinha um retrato
E um baralho
Na frente nada
Atrás poeira
Atrás porteira
Atrás da Rita
Que foi bonita
Que anda bebendo
Que anda correndo
Atrás do tempo
e dos rapazes
Que eram capazes
De ir a fundo
E dar o mundo
De dar o brilho
Que as mulheres
Tem quando casam
e lhes dão filhos
Tava perdido
Mas é sabido
Que nessa horas
Só os amigos
São quem socorre
José de porre
Tá com malfeito
Antonio morre
Daquele jeito
Tão novo ainda
Deixou Bemvinda
Que era linda
Pro Zé Calixto
Que era mal-visto
Por todo lado
Ladrão de gado
Ganhou dinheiro
Virou posseiro
Montou garimpo
E anda limpo
Perdeu o cheiro
Quem tem os homens
Quando trabalham
E na tocaia
É o que se fala
Que aquela bala
Era pra ele
Não pro parceiro
Pro violeiro
que andava a esmo
Que era mesmo
Bom companheiro
E já que agora
Tá tudo fora
Tudo partido
E sem sentido
Não tem sentido
Ter na algibeira
O seu retrato
e o seu baralho
É ele o baio
E nada mais.

Nossa cabeça virou um tsunami? Acho que não sei

O psicanalista Contardo Calligaris, hoje, na Folha, fala de uma tal síndrome de Fukushima, que é uma metáfora do que ele entende ser o mundo em que vivemos. Uma sucessão interminável de informações, as quais não damos conta de processar e que, ao mesmo tempo, nos impõe uma sensação incontrolável de termos de conseguir, sem o que estaremos fora de um suposto nível de capacitação para a vida em sociedade... Se você está pensando que está tudo muito confuso, não se espante. Eu também estou achando. Leia o texto e discorde de tudo. Ou não. O título da coluna é justamente Síndrome de Fukushima.


Em 12 e 13 de junho, os italianos votarão, num referendo, a favor ou contra o uso da energia nuclear.
Portanto, em Veneza, na semana passada, o assunto corria pelas ruas. Tanto mais que, entre as possíveis sedes de uma usina nuclear, há Chioggia, numa das duas entradas da laguna, a 20 km da Piazza San Marco.
Por um momento, imaginei um futuro em que hordas de turistas deambulariam pelos "campi" da cidade de macacão branco e capacete de astronauta. Não é novidade: também já imaginei como seria fazer esqui náutico nas águas de Angra vestindo o mesmo macacão e o mesmo capacete.
Em Veneza, durante a Bienal, é frequente que casas e comércios vazios hospedem uma obra ou uma exposição. Num desses espaços, bem perto de um estande da campanha antinuclear, visitei "Memory of Books" (memória de livros), de Chiharu Chiota, uma artista japonesa que mora na Alemanha.
A obra apresenta um escritório, com cartas e livros cobertos por uma gigantesca teia de aranha: é como se enxergássemos nossa vida (inclusive os esforços de nosso pensamento) na nostalgia, depois de nosso sumiço da face da terra, pessoal ou coletivo.
Veja em http://migre.me/4JyrK.
Bom, esse era meu estado de espírito quando assisti à primeira palestra de "The State of Things" (o estado das coisas), uma série de conferências que é uma das contribuições da Noruega à Bienal de Arte. Na introdução, Marta Kuzma, diretora da entidade norueguesa que se ocupa de arte contemporânea, falou da "síndrome de Fukushima" como traço específico de nossa época. Logo, tomou a palavra Jacques Rancière, filósofo francês que aprecio e leio; o título da conferência era "In What Time Do We Live?" (em que tempo vivemos?). Rancière falou muito rapidamente e num inglês de sua invenção própria (ao menos foneticamente). Não entendi nada, mas acabei gostando, justamente porque não foi uma palestra, foi uma performance artística, uma demonstração lúdica de que nosso melhor pensamento, diante da complexidade do tempo em que vivemos, não passa de uma agitação sonora no dia depois da queda de Babel.
De repente, a expressão de Marta Kuzma me pareceu adquirir um novo sentido. A síndrome de Fukushima não designa os problemas dos quais padeceríamos por escolher o nuclear; ela designa a condição geral de nossos esforços discursivos e intelectuais (e também de nossa ação, claro) num mundo que apresenta sempre (e no mínimo) a mesma complexidade do acidente da usina nuclear japonesa.
Você se lembra da valsa de notícias e explicações depois do acidente? Teve um reator que vazou, mas está contido; não, parece que tem outro que está pior; por sorte, o resfriamento está funcionando; não, não está; a população não corre perigo; a população está sendo evacuada; não tem vazamento; só tem um pouco de radiações na terra ao redor da central; tem também nos legumes; tem no mar; não foi o terremoto, foi o tsunami; não foi o tsunami, foi o terremoto; é Tchernobil, de novo; não, é mais tipo Goiânia etc.
Certo, houve uma vontade de não alarmar excessivamente as populações, quem sabe negando a gravidade do que estava acontecendo, mas não acredito em nenhum plano explícito de ocultação. A ideia de um complô do silêncio seria, aliás, uma grande consolação, pois, se houvesse complô, haveria um desvendamento possível da verdade dos fatos e das responsabilidades. Quem dera.
De fato, a dificuldade contemporânea (mas que eu não trocaria por nenhuma volta ao passado) não é tanto o silêncio imposto (de fora ou de dentro) quanto o excesso de variáveis. E quanto maior for o número de variáveis que contam na nossa visão da realidade, tanto mais vão será o trabalho de entender e inventar conceitos.
"Conceito", aliás, vem do latim "cum capio", que sugere a ideia de conseguir pegar várias coisas ao mesmo tempo, num punho. Talvez a culpa seja nossa, por querermos e sabermos levar em conta demasiados fatores (ingredientes?) na hora de entender e decidir, mas o fato é que a realidade contemporânea se parece com uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela passa entre os dedos e foge da presa.
É isso que fiquei com vontade de chamar de síndrome de Fukushima, o efeito de uma complexidade (nas coisas e na gente) que pode transformar os discursos teóricos em performances sonoras.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Inteligência é pra poucos, como nós...

Já há semanas que não transcrevo aqui a coluna do Pondé, na Folha, talvez por eu ter achado algumas delas meio bobas, vazias. Mas a de hoje diz muito de nós todos, que costumamos ter uma condescendência absurda conosco mesmo. Nós todos, eu disse. O título da coluna: Jantares inteligentes. Hoje, na Folha.


Você já foi a um jantar inteligente? Jantares inteligentes são frequentados por psicanalistas, artistas plásticos, músicos, atores, jornalistas, publicitários (com a condição de falar mal da publicidade), médicos (esses porque, como é sempre chique ser médico, não se dispensa médicos nunca), produtores, "videomakers", antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos.
Administrador de empresa não pega bem (a menos que tenha um negócio sustentável). Engenheiros, coitados, só vão se forem casados com psicanalistas que traduzem pra eles esse mundo de gente inteligente. Advogados podem ir porque é sempre necessário um cínico inteligente em qualquer lugar. Pedagogas, só se casadas com esses advogados e por isso talvez consigam bancar amizades chiques assim.
Ricos são sempre bem-vindos apesar de gente inteligente fingir que não gosta de dinheiro. Pobre só se for na cozinha, mas são super bem tratados. Claro, tem que ter um amigo gay feliz.
Essa gente é descoladíssima. Seus filhos estudam em escolas de esquerda, claro, do tipo que discute o modelo cubano de economia a R$ 2 mil por mês.
Quando viajam ficam em lugares que reúne natureza "pura", tradição (apenas como "tempero do ambiente") e pouca gente (apesar de jurarem ser a favor da democracia para todos, só gostam de passar férias onde o "povo" não vai).
Detalhe: é essencial achar todo mundo "ridículo" porque isso faz você se sentir mais inteligente, claro.
Quanto à religião, católica nem pensar. Evangélicos, um horror. Espírita? Coisa de classe média baixa. Budista, cai muito bem. Judaica? Uma mãe judia deixa qualquer um chique de matar de inveja. Judaísmo não é religião, é grife.
Mas o que me encanta mesmo são as "atitudes" que se deve ter para se frequentar jantares inteligentes assim. Claro, não se aceita qualquer um num jantar no qual papo cabeça é o antepasto.
Quer saber a lista de preconceitos que pessoas inteligentes têm? Qualquer um desses "gestos" abaixo você pode ter, que pega bem com comida vietnamita ou peruana.
1) A Igreja Católica é um horror e o papa Bento 16 é atrasadíssimo. Claro que não vale ter lido de fato nada do que ele escreveu;
2) Matar Osama bin Laden sem julgamento foi um ato de violência porque terroristas são pessoas boazinhas que querem negociar a paz em meio a criancinhas;
3) Ter ciúmes é coisa de gente mal resolvida;
4) Se algum dia um gay lhe cantar e você se sentir mal com isso, você precisa rever seus conceitos porque gente inteligente nunca tem mal-estar com coisas assim;
5) Se seu filho for mal na escola, minta. Se alguém descobrir, ponha a culpa na professora, que é mal preparada pra lidar com crianças como seus filhos, que se preocupam com as baleias já aos 11 anos e discutem a África no Twitter;
6) Caso leve seus filhos à Disney, não conte a ninguém, pelo amor de Deus!;
7) Acima de tudo, abomine os Estados Unidos, ache Obama ótimo e vá à Nova York porque Nova York "não são os Estados Unidos";
8) Não seja muito simpático com ninguém porque gente simpática é gente carente e gente assim procura "eye contact" em festas. Um conselho: olhe sempre para um ponto no horizonte. Assim, se alguém falar com você, ela é que é carente;
9) Ache uma situação para dizer que você conhece uma cidadezinha no sul da Itália e lá ficou hospedado na casa de uma amiga brasileira casada com um italiano que defende o direito dos imigrantes africanos e odeia Silvio Berlusconi;
10) O ideal seria se você tivesse passaporte italiano também;
11) Se alguém falar pra você que não dá para pagar direitos sociais e médicos para imigrantes ilegais na Europa, considere essa pessoa um "reacionário de direita", mesmo que você não aceite sustentar alguém que não seja você mesmo e sua família (no caso da família nem sempre, claro);
12) No conflito israelo-palestino, não tenha dúvida, seja contra Israel, mesmo que morra de medo de ir lá e não tenha lido uma linha sequer sobre a história do conflito;
13) Se você se sentir mal com a legalização do aborto, minta;
14) Deixe transparecer que só os outros transam pouco;
15) Seja ateu, mas blasé.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Onde começa um mundo, onde acaba o outro?


Confesso a todos minha mais absoluta ignorância sobre os limites ilimitados deste nosso mundo. O que é o mundo, afinal? Se a gente tomar um avião e voar infinitamente a gente sai desse mundo? Quando há um terremoto como o que houve no Japão, aquelas placas que balançam são o limite deste nosso mundo? Não sei bem, não entendo muuito, mas acho danado de bom continuar assim, sem entender. A propósito disso, a Nasa divulgou hoje esta foto fantástica, que mostra onde termina a atmosfera e começa o tal chamado espaço sideral. Esquisito, ilimitado, infinito, como todos pensamos que somos, às vezes.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Três mil palavras




Três imagens, entre tantas milhares que estão à nossa disposição no site da World Press Photo - http://www.worldpressphoto.org/ Estas três sempre me chamaram muito a atenção, especialmente a do meio, feita por um fotógrafo francês em um dos campos de prisioneiros do Afeganistão. Uma síntese da imagem que vale milhões de palavras, por sua simbologia terrível de impessoalidade, por sua crueza de expor o rompimento de um relacionamento aparente de pai e filho. Um exemplo, junto com os outros, do sem-limites que carregamos na nossa alma.


Entre duas paledes...

Reprodução/Daily Mail

Este é um chinesinho de 5 anos que estava brincando de pique-esconde (na China, a brincadeira chama-se xixcondpick), quando entrou em uma fresta de 15 centímetros entre duas paredes e não conseguiu mais sair. Fez esta carinha e este biquinho universalmente apaixonantes e foi salvo pelos bombeiros, que abriram um buraco para resgatá-lo. Ao sair, comentou: "palede muto estleita, né?"

Oba! Escândalo novo na praça

Dois, na verdade. Nacionalmente, o ministro Palocci cai de novo na boca do povo por causa de uma denúncia da Folha sobre a evolução da sua riqueza patrimonial. Pra quê? De domingo pra cá, o roteiro é o mesmo de sempre: políticos da situação defendendo, políticos da oposição defenestrando o indigitado, leitores de jornal e de blogs detonando o que podem e o que nem sabiam que podiam. Localmente, acaba de sair a desaprovação das contas do ex-governador de Goiás pelo Tribunal de Contas do Estado, o que não é pouca coisa, mas que sempre deixa a cheirar mal, já que o atual governador é adversário figadal do ex, não obstante o ex ter sido fruto político do atual. Estranho? Estranho. Mas é assim que a classe política e a mídia vão conseguindo, de mãos dadas, vulgarizar qualquer resquício de honestidade.

Tá rindo de quê, desesperado?

Nesta quarta o colunista Marcelo Coelho, da Folha, escreveu o que eu deveria ter escrito (ou dito) quando me perguntaram outro dia sobre assistir ou não o CQC, programa da televisão. Bom, excelente programa, mas que vem pecando pelo excesso de uso do humor fácil, gratuito, típico jogo pra torcida. A medir pelo que o colunista descreve, há algo ainda pior, protagonizado por um dos piores rapazes do programa, Danilo Gentili, em suas tuitadas ou em uma de suas performances teatrais de stand-up. Leia e veja do que nos livramos até agora. E digam se não lembra aquele verso de uma música do Frejat que fala algo como "rir de tudo é desespero". Ah, o título da coluna do Marcelo Coelho é Politicamente fascista:


O comediante Danilo Gentili pediu desculpas pela piada antissemita que divulgou no Twitter. A saber, a de que os velhos de Higienópolis temem o metrô no bairro porque "a última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz".
Aceitar suas desculpas pode ser fácil ou difícil, conforme a disposição de cada um. O difícil é imaginar que, com isso, ele venha a dizer menos cretinices no futuro.
Não aguentei mais do que alguns minutos do programa "CQC", na TV Bandeirantes, do qual é ele uma das estrelas mais festejadas. Mas há um vídeo no YouTube, reproduzindo uma apresentação em Brasília do seu show "Politicamente Incorreto", em outubro de 2010.
Dá para desculpar muita coisa, mas não a falta de graça. O nome oficial do Palácio do Planalto é Palácio dos Despachos, diz ele. "Deve ser por isso que tem tanto encosto lá." Quem o construiu foi Oscar Niemeyer, continua o humorista. E construiu muitas outras coisas, como as pirâmides do Egito.
A plateia tenta rir, mas só fica feliz mesmo quando ouve que Lula é cachaceiro, ou que (rá, rá) o nome real de Sarney é Ribamar. Prossegue citando os políticos que Sarney apoiou; encerra a lista dizendo que ele só não apoiou o próprio câncer porque "o câncer era benigno".
Os aplausos e risadas, pode-se acreditar, vêm menos da qualidade das piadas e mais da vontade de manifestação política do público. Detestam-se, com razão, os abusos dos congressistas brasileiros. Só por isso, imagino, alguém ri quando Gentili diz preferir que a capital do país ficasse no Rio: "Lá pelo menos tem bala perdida para acertar deputado".
Melhor parar antes que eu fique sem respiração de tanto rir. Como se vê, em todo caso, o título do show não é bem o que parece. "Politicamente incorreto", no caso, faz referência às coisas erradas feitas pelos políticos, mais do que ao que há de chocante em piadas sobre negros ou homossexuais.
A questão é que o rótulo vende. Ser "politicamente incorreto", no Brasil de hoje, é motivo de orgulho. Todo pateta com pretensões à originalidade e à ironia toma a iniciativa de se dizer "incorreto" -e com isso se vê autorizado a abrir seu destampatório contra as mulheres, os gays, os negros, os índios e quem mais ele conseguir.
Não nego que o "politicamente correto", em suas versões mais extremadas, seja uma interdição ao pensamento, uma polícia ideológica.
Mas o "politicamente incorreto", em sua suposta heresia, na maior parte das vezes não passa de banalidade e estupidez.
Reproduz preconceitos antiquíssimos como se fossem novidades cintilantes. "Mulheres são burras!" "Ser contra a guerra é viadagem!" "Polícia tem de dar porrada!" "Bolsa Família serve para engordar vagabundo!" "Nordestino é atrasado!" "Criança só endireita no couro!"
Diz ou escreve tudo isso, e não disfarça um sorrisinho: "Viram como sou inteligente?".
"Como sou verdadeiro?" "Como sou corajoso?" "Como sou trágico?" "Como sou politicamente incorreto?"
O problema é que "politicamente incorreto", na verdade, é um rótulo enganoso. Quem diz essas coisas não é, para falar com todas as letras, "politicamente incorreto". Quem diz essas coisas é politicamente fascista.
Só que a palavra "fascista", hoje em dia, virou um termo... politicamente incorreto. Chegamos a um paradoxo, a uma contradição.
O rótulo "politicamente incorreto" acaba sendo uma forma eufemística, bem-educada e aceitável (isto é, "politicamente correta") de se dizer reacionário, direitista, fascistoide.
A babaquice, claro, não é monopólio da direita nem da esquerda. Foi a partir de uma perspectiva "de esquerda" que Danilo Gentili resolveu criticar "os velhos de Higienópolis" que não querem metrô perto de casa.
Uma ou outra manifestação de preconceito contra "gente diferenciada", destacada no jornal, alimentou a fantasia mais cara à elite brasileira: a de que "elite" são os outros, não nós mesmos. Para limpar a própria imagem, nada melhor do que culpar nossos vizinhos.
Os vizinhos judeus, por exemplo. É este um dos mecanismos, e não o vagão de um metrô, que ajudam a levar até Auschwitz. 

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Pondé vê a burca (e o preconceito de cada um de nós)

Esperava que o Luiz Fernando Pondé tratasse hoje da aprovação dos casamentos gays e o comportamento tipicamente burguês de quem assiste a tudo com um ar de modernidade inquestionável. Não foi hoje, mas mesmo assim ele fala sobre caso parecido. Tá na Folha de hoje, e o título bem apropriado é Fetiche intelectual:


Há duas semanas ("A burca", Ilustrada, 25/4), eu disse que era a favor da lei francesa contra a burca (que muita gente confunde com o véu, que não é proibido na França). Aliás, com aquele véu, a mulher mulçumana parece uma Afrodite em versão corânica. Uma deusa de sensualidade. Andam pelas ruas juntas, como um vento que varre nossos olhos com seus olhos.
São a prova viva de que a invisibilidade da forma do corpo (ou a visibilidade apenas pressentida) é muito mais sensual do que a obscena explicitação da forma.
Um mar de e-mails e protestos contra a minha "intolerância com o outro". Obrigado.
Mas adianto: de todos os argumentos dos tranquilos defensores do "direito à burca" (acho a expressão engraçada por si só), um me parece o mais absurdo. Já vou dizer qual é.
Digo àqueles que discursam a favor da burca desde seus apartamentos com TV a cabo, de seus cursos de história da arte, de seus direitos de ir e vir e praticar sexo sadomasô, se assim o quiser, enfim, da condição de adorar Elvis, ETs, o nada, a mãe-natureza (pra mim está mais pra madrasta) ou seu próprio e pequeno "eu", que não acredito que nenhuma mulher use uma burca porque "quer".
O argumento mais absurdo é "as mulheres usam a burca porque querem". Não acredito nesse papinho multiculturalista.
O argumento "fulana nasceu na cultura X, a cultura X implica Y, logo fulana quer Y" é um sofisma barato. Quer ver?
Acho que um desses assinantes de TV a cabo, defensores do "direito à burca" provavelmente defenderia hoje o direito a "ser escravo" na medida em que "alguém foi acostumado pela cultura a isso". Será?
Que tal a "lapidação" (corte ritual do clitóris) que alguns praticam por aí? Também algo que devemos "achar objeto do direito da cultura". Azar de quem nasceu num lugar desses?
O debate contemporâneo é como uma guerra de trincheiras. Ninguém consegue ver muito longe, não existe mais nenhuma teoria grandiosa e definitiva, mas nem por isso é menos sangrento e sério. De minha parte, não tenho dúvida de qual lado da trincheira estou: daquele contra o fundamentalismo religioso seja qual ele for.
E fundamentalismo não é a mesma coisa que terrorismo islâmico (que alguns dizem que está acabando...). Muitas vezes o fundamentalismo é silencioso e invisível em seus modos de tortura. Fundamentalismo religioso é uma forma de reação aos "costumes modernos".
Nos dias seguintes a esse meu texto sobre a burca, uma mulher me abordou contando o seguinte.
Em férias num país de maioria mulçumana, ela vira lado a lado uma alemã de férias com um shortinho desses de parar o trânsito e uma mulher com uma dessas burcas de mau gosto (o "de mau gosto" é por minha conta, ou melhor, minha culpa, minha máxima culpa).
Isso seria índice de como as "culturas" são diferentes. Uso as aspas aqui para a palavra "culturas" porque "cultura" virou um segundo grande fetiche da burguesia (o primeiro, segundo Theodor Adorno, seria a ciência). A inteligência burguesa blasé gosta de citar a "cultura" como prova de sua "generosa aceitação do outro" e de ausência de preconceitos. Quem diz que não tem preconceito é mentiroso.
A questão, caros defensores do "direito à burca", é que, no mundo do fundamentalismo religioso (e tem gente que acha que não existe fundamentalismo religioso...), a menina alemã não teria o direito de usar seu shortinho que para o transito. Ela também teria que usar a burca (claro, mas ela aceitaria porque afinal, a "cultura" a faria aceitar, ou a sua filha, no futuro).
A burca é o fundamentalismo religioso. Só cego não vê isso. Os talibãs (essa gente democrática, doce e respeitadora do "outro") adoravam as burcas e, de certa forma, a "inventaram".
Mas esses relativistas assinantes de TV a cabo, na realidade, são como gente de 18 anos que diz para o professor "cada um é cada um" a fim de que ele pare de encher o saco com perguntas difíceis.
No fundo, o segredo de dizer "é a cultura dela", ou "cada um tem um ponto de vista", é soar chique. É posar de estar em dia com o "respeito ao outro". Puro fetiche.